terça-feira, 31 de março de 2015

A ORAÇÃO PELA CURA: UMA PERSPECTIVA SOB A ÓTICA CATÓLICA E EVANGÉLICA PENTECOSTAL





PONTIFÍCIO CONSELHO PARA A PROMOÇÃO 
DA UNIDADE DOS CRISTÃOS

CONFERÊNCIA DE JUAN USMA GÓMEZ

A cura para pentecostais e católicos

O lema da Semana de Oração pela Unidade de 2007: "Faz ouvir os surdos e falar os mudos" (Mc7, 31-37), reapresenta-nos um dos argumentos aparentemente mais controversos na relação entre católicos e pentecostais: a cura. Com efeito, ao lado do falar em línguas, a insistência densa de expectativas postas nas curas milagrosas constitui um dos "modos pentecostais" que provocam surpresa e perplexidade acerca da sua legitimidade e do seu sentido propriamente cristão.

Em quase todo o mundo, a promessa de cura tornou-se um leitmotiv com o qual as comunidades pentecostais e carismáticas atraem novos membros (1). Não obstante, ao admitir que essa visão é redutiva, devemos reconhecer que a promessa ou o anúncio de curas realizadas constituem um dos elementos mais "eficazes" de atracção nos nossos dias. Ser curado ou ser testemunha de uma cura realizada na comunidade de pertença torna-se cada vez mais importante.

Se tomarmos a Sagrada Escritura, vemos imediatamente que os Evangelhos trazem muitas narrações de curas. Sem dúvida, a compaixão de Cristo para com os doentes e as suas numerosas curas de enfermos de qualquer tipo são um claro sinal do facto que "Deus visitou o seu povo" (Lc7, 16) e que o Reino de Deus está próximo (cf. Mt 10, 7; Lc 10, 9). Certamente, o ministério de Jesus realizava-se por intermédio de palavras de autoridade e obras poderosas. As curas por ele realizadas não são simples obras taumatúrgicas, mas, sem excepção, estão relacionadas com a fé do doente e tornam-se experiência messiânica (cf. Mt 8, 6-10; 9, 21-22, 27-30; Mc 2, 4-5; 10, 50-52; Lc 17, 17-22; Jo 9, 1), embora nem sempre reconhecida na sua bondade por aqueles que estão ao lado dos doentes (cf. Mc 2, 4-9; Jo 9, 13-40).

Nas narrações neotestamentárias, contudo, Jesus não é o único curador. Ele próprio doa aos apóstolos o poder de curar. Os apóstolos e outros, no cumprimento da sua missão e como parte dela, realizaram curas em nome de Jesus; nunca como manifestação do próprio poder ou para os próprios fins (cf. Act 8, 13; 9, 36-43; 14, 8-11). Além disso, Paulo, na sua Carta aos Coríntios, refere-se a um carisma especial de cura que o Espírito Santo doa a alguns crentes a fim de que se manifeste a força da graça que provém do Ressuscitado (cf. 1 Cor 12, 9.28.30).

Até aqui tudo parece claro. Pedir a saúde do corpo e da alma é prática conhecida desde sempre na Igreja. Aliás, folheando as páginas do Catecismo da Igreja Católica lemos que: "O Senhor Jesus Cristo, médico das nossas almas e dos nossos corpos, que perdoou os pecados ao paralítico e lhe restituiu a saúde do corpo, quis que a Igreja continuasse, com a força do Espírito Santo, a sua obra de cura e de salvação, mesmo junto dos seus próprios membros" (2). Esta afirmação é plenamente partilhada pelos pentecostais; contudo, deve-se notar que no Catecismo ela introduz o capítulo dedicado aos "sacramentos de cura", isto é, os sacramentos da penitência e da reconciliação e a unção dos enfermos.

Para um católico, pedir a cura é legítimo. De facto, a Igreja em diversos momentos e com diferentes ritos, recita orações litúrgicas por essa intenção. São muito conhecidos os santos taumaturgos e os vários lugares de oração onde se dão inúmeros testemunhos de curas milagrosas. Pedir a graça da cura não é portanto estranho à prática católica. Todavia, isto não deve fazer esquecer ao cristão que nenhum mal é mais grave do que o pecado e nada tem piores consequências para os próprios pecadores, para a Igreja e para todo o mundo (3). A recuperação da saúde é importante se beneficiar a salvação espiritual (cf. Mt 9, 5-8). A cura é uma graça, mas a doença não é necessariamente a ausência dela: a união do doente à paixão de Cristo é fundamental para o seu bem e para o bem da Igreja (cf. Cl 1, 24).

Da parte dos evangélicos e pentecostais a abordagem é diferente. Às vezes, fala-se de diversas teologias da cura que, em geral, vinculam a cura à expiação de Cristo. E, se de qualquer modo a expectativa de cura é encorajada e o ministério de cura é considerado como um elemento legítimo do evangelismo, não raramente se ouvem vários líderes pentecostais que advertem os fiéis e/ou protestam contra certas práticas ilegítimas que, escondendo-se atrás de promessas de cura, apontam para projectos pessoais muito distantes do Evangelho. "A maior ameaça para o movimento pentecostal/carismático nos últimos vinte anos deste [XX] século serão o sucesso e a ruína dos "reinos pessoais", pois quando eles desabarem, como é inevitável que aconteça, a fé daqueles que não tiverem o olhar centrado em Cristo desabará com eles" (4).

O surgimento daqueles que exercem o carisma da cura, homens e mulheres, cuja "performance" se tornou ainda mais visível através dos mass media e dos grandes congressos, suscitou questões doutrinais e pastorais muito urgentes para todos os cristãos.

Reconhecidos como pertencentes sobretudo à terceira onda do pentecostalismo (third wavers), as pessoas que hoje se apresentam com o carisma da cura fazem referência a diversas tradições cristãs. Mas alguns desses "televangelistas" agem mais como televendedores de produtos religiosos, com uma consequente vantagem económica, e não raro, nas suas promessas de cura, percebem-se o engano e a intenção de explorar a boa fé das pessoas carentes. Nesta lógica, o risco de uma moderna "simonia" é altíssimo (cf. Act 8, 18-25).

Suscitam perplexidades o uso a bel-prazer do suposto "carisma de cura" e as revelações pessoais que frequentemente indicam a cura realizada ou a dificuldade apresentada por alguns dos presentes que impede a actuação da libertação do maligno. Ao referir-se aos textos neotestamentários, aqueles que exercem o carisma da cura se definem com frequência exorcistas; por conseguinte, a cura mais do que restabelecimento da saúde é antes libertação do maligno.

Embora admitindo a boa intenção das pessoas que neles depositam confiança, podem surgir dúvidas sobre a gratuidade e a consistência da fé de tais pessoas que parece depender não tanto de Jesus Cristo mas dos milagres, curas e performance dos líderes. O Evangelho então passa para o segundo plano.

Também na Igreja Católica, por influência do movimento carismático, as orações de cura expressas em grupo são muito comuns. A Congregação para a Doutrina da Fé publicou no ano 2000 aInstrução acerca das orações para obter de Deus a cura, destinada aos bispos com a finalidade de guiar os fiéis nesta matéria; a instrução quer favorecer o que há de bom na oração e corrigir o que deve ser evitado. A apresentação inclui uma parte doutrinal sobre as graças de cura e as orações para as obter e apresenta no final relativas disposições disciplinares (5).

Sobre a cura na Igreja, o Diálogo Internacional Católico-Pentecostal, na sua segunda fase, expressou algumas reflexões que até hoje são válidas, embora o assunto exija um ulterior aprofundamento comum a fim de evitar julgamentos injustos. No que diz respeito à cura, católicos e pentecostais concordam (6) sobre a necessidade da cruz (a busca da cura não é uma simples procura de bem-estar); a cura é um sinal do Reino; ela envolve a pessoa na sua totalidade; a expectativa confiante de receber a graça de uma cura não é contrária à vida cristã; nós cremos que somente Cristo tem o poder de curar. Todavia, não há acordo nem convergência acerca do aspecto sacramental e, por conseguinte, sobre a importância do ministro ordenado no que se refere aos sacramentos de cura, e em particular ao sacramento dos doentes.

Também hoje Cristo faz ouvir os surdos e falar os mudos. Também hoje o carisma da cura é doado a alguns crentes. Mas, embora reconhecendo a possibilidade da cura, pois estamos convictos de que a Deus nada é impossível, não podemos compreender os milagres de cura como condição necessária para a nossa fé cristã: não se deve necessariamente ver para crer (cf.Jo20, 24-29).

Portanto, o discernimento espiritual é ainda mais necessário para identificar um ministério autêntico. "Em razão da fragilidade humana, da pressão de grupo e de outros factores, é possível que o crente seja induzido em erro na sua consciência por aquelas que são a intenção e a influência do Espírito sobre as suas acções. Por este motivo, é essencial estabelecer os critérios para confirmar e convalidar a operação genuína do "Espírito de verdade" (cf. 1 Jo 4, 1-6)" (7).

Actualmente, os carismas e os dons do Espírito Santo adquirem uma crescente visibilidade, em alguns casos podemos dizer excessiva. Esta situação requer uma orientação a fim de que os carismas sejam identificados adequadamente e encontrem seu "espaço", para que sejam exercidos para o bem de toda a Igreja (cf. 1 Cor 12-14). Fornecer elementos de discernimento espiritual deveria contribuir para individualizar a autenticidade de uma experiência espiritual e a sua conformidade com a doutrina da Igreja, evitando desse modo desvios e iluminando as "experiências espirituais" dos crentes.

Concluo esta reflexão convidando a ler, discutir e avaliar o relatório final da quinta fase do Diálogo católico-pentecostal, que será publicado proximamente. O texto oferecerá a possibilidade de percorrer, com base nas fontes bíblicas e patrísticas, o caminho da fé, conversão, discipulado, experiência comunitária e percepção da acção do Espírito Santo (em particular em relação ao baptismo no Espírito). Os membros do diálogo apresentam reflexões comuns acerca de cada aspecto na situação actual, procurando evidenciar não somente a beleza da vida cristã, mas também a sua dinamicidade desde as origens. O documento articula-se em três pontos: como se tornar cristão segundo a Bíblia; o que acontece durante o período patrístico; quais são as abordagens pastorais actuais de ambas as comunidades.
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Notas
1. Este facto foi constatado também durante os quatro seminários sobre o ecumenismo organizados pelo Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos no Brasil, Quénia, Senegal e Coreia.
2. Catecismo da Igreja Católica, 1421.
3. Cf. Catecismo da Igreja Católica, 1488.
4. W. MacDonald, The Cross versus Personal Kingdom, Pneuma 3/2, Fall 1982, em: W. Hollenweger, Pentecostalism: Origins and Developments Worldwide, Peabody 1997, p. 230.
5. Cf. Congregação para a Doutrina da Fé, Instrução acerca das orações para obter de Deus a cura, Vaticano, 14 de Setembro de 2000.
6. Diálogo Internacional Católico-Pentecostal, Relatório final 1977-1982, par. 31-40, original em: Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos, Information Service [IS] 55 (1984/II-III).
7. Diálogo Internacional Católico-Pentecostal, Relatório final (1972-1976), par. 40, original em: IS 3

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